eu tive um pesadelo
tive medo de não acordarDo alto de uma torre
Eu vi a terra
Em transe profundo
4:35 da manhã. Estação Queimados. O sol ainda está longe de mostrar seus primeiros raios da manhã. Você não conseguiu comer nada antes de sair de casa para conseguir chegar a tempo na estação. Junto a mais alguns tantos desafortunados aguarda o primeiro trem saindo de Japeri para a Central do Brasil. Ao longe você vê o farol da composição se aproximando e se prepara. Mochila pra frente. Corpo tenso. Um passo firme para se juntar à barreira de corpos. Ombro contra ombro com todas as outras pessoas, alguém tentando furar a barreira por trás. O trem chega, o chiado característico das rodas no trilho precede a vinheta sonora, as portas se abrem e a parede de corpos do lado de fora tenta penetrar a muralha de corpos do lado de dentro. O sacolejo da máquina rearranja e organiza os corpos ali dentro e logo todos estão perfeitamente acomodados, tão perfeitamente acomodados como pode se estar no primeiro Japeri x Central do dia. O arranjo permite algum movimento e quase uniformemente todos os braços se mexem, procurando o aparelho-extensão do corpo e da mente. Você procura o seu também, o do bolso mais à frente da mochila é o do ladrão, num compartimento falso mais escondido está o seu, comprado em 12 vezes sem juros na promoção de fim de ano. O dedo alisa a tela e vai logo pro aplicativo de rede social. Antes mesmo de você acordar, aquele perfil inspirador com conteúdo de mindfulness já postou que fez a corrida do dia, fez o seu devocional com a bíblia e agora estuda algum livro de desenvolvimento pessoal para aplicar nos negócios. Ao final da sequência de stories, ali às 4:35 da manhã, quando você, ainda sonolenta, se preparava para entrar no trem, vem a mensagem “Nós todos temos as mesmas 24 horas no dia para o sucesso, como você está usando as suas?”
todo mundo era poeta
todo mundo era atleta
todo mundo era tudoDo it yourself, diziam
O céu é o limite, acredite
O sol castigando o corpo no serviço do dia no centro da cidade. Pelo volume de afazeres que chegaram no seu whatsapp provavelmente você vai ficar até tarde na rua hoje e nem vai receber a mais por isso. Quem inventou esse maldito banco de horas, afinal? Mais uma espiadinha no aparelho-extensão do corpo e da mente no meio da manhã entre uma tarefa e outra. Novamente a influenciadora com toda sua positividade posta sua mais nova empreitada no mundo dos negócios. Depois de ter sido bem sucedida com sua hamburgueria natural, depois de escrever um ebook sobre o seu sucesso que pode ser adquirido clicando no link na bio, e depois de rodar o mundo pregando como encontrar uma vida com mais propósito sem deixar de lado a educação financeira, ela está começando um retiro para profissionais de todas as áreas desenvolverem todo o seu potencial e oferece a incrível oportunidade de ser sorteado para o seleto grupo de network para o seu personal branding ou qualquer coisa do tipo.
Eram várias variáveis
Um vírus voraz no computador
Sem rumo
Um anúncio aparece na televisão do pê-éfe onde você almoça com os colegas de empresa.
Seu corpo é uma máquina. [Corpos atléticos suados praticando esportes aparecem em flashes estroboscópicos]
E toda máquina precisa do combustível certo. [Carros de luxo fazendo curvas e acelerando contra uma paisagem paradisíaca]
Nenhuma máquina perde mais tempo que o necessário para reabastecer. [Veículo de fórmula 1 num pitstop sendo reabastecido e rapidamente voltando à pista]
Nutrição completa de forma rápida e prática. Proteínas, fibras, 25 vitaminas e minerais essenciais, gordura e carboidratos na mesma bebida. [A influencer de positividade e mindfulness aparece e sorri olhando diretamente nos seus olhos.]
Um QR Code aparece na tela e você prontamente aponta a câmera do seu aparelho-extensão para a TV e segue o link para compra. Um valor pequeno para o que ele promete. Só isso por uma refeição completa? Vou querer uma caixa logo.
Chegando em casa a caixa já te espera na portaria. Um engradado com garrafas opacas de 250 ml. Ao contrário do que manda a embalagem “consuma direto do frasco e recicle logo depois” escrito numa tipografia verde descolada, você despeja o conteúdo num copo americano pra ver qual é o aspecto dessa bebida. A cor não é nada atrativa, remetendo ao filtro de um cigarro e não tem nenhum cheiro característico, não fosse pela cor, lembraria a água. Um gole rápido no copo não permite identificar nenhum sabor e você duvida de que realmente haja algum nutriente naquilo mas se lembra de todos os influenciadores que viu divulgando a bebida e termina o primeiro frasco sem pestanejar. Não leva 2 minutos para acabar o conteúdo e a satisfação de um banquete se instala no seu corpo. O tempo que você gastaria para preparar uma refeição está livre e você decide começar um novo curso, energizada pela refeição instantânea. Empolgada com o que conseguiu completar no dia, você pega seu aparelho-extensão e compartilha uma selfie com seu drinque nutritivo e uma frase de impacto.
Eu tive um pesadelo
Tive medo de não acordar
Tudo andava tão caído
Eu andava por aí
Sem rumo
Alguns meses passaram e você se tornou a máquina daquela propaganda. A produtividade a mil no trabalho, você já enxerga a promoção vindo logo na esquina. Você consegue ler todos os livros de desenvolvimento pessoal que os influenciadores indicam e até conseguiu encaixar um pouco de esporte na sua rotina com corridas noturnas. Tudo o que você pensa e fala e posta na internet reflete alta performance e produtividade. As roupas sempre da mesma cor e do mesmo estilo para não perder tempo tomando decisões inúteis como escolher uma roupa que te agrade, é assim que fazem os grandes CEO’s nos livros que você leu. O trabalho é sempre executado com um podcast educativo nos fones, nada de música ou humor ou reflexões políticas inúteis, apenas conteúdo de alto valor sobre negócios e desenvolvimento pessoal como tem que ser. E as refeições? Seguem sendo feitas à base do drinque nutritivo que passou por uma recente reformulação e hoje supre todas as demandas para as funções bioenergéticas com apenas um frasco, um pouco mais caro do que no início, é verdade mas compensa pela eficiência. Eficiência ao seu máximo em todos os âmbitos da sua vida. Mas algo não parece certo e por alguns segundos você fica perdida em pensamentos tentando entender.
O alarme toca te tirando da reflexão e lembrando que é hora de injetar combustível, como é a gíria entre os adeptos da bebida nutricional. Você sacode a embalagem e dá uma olhada para o conteúdo líquido traçando pequenos círculos com o pulso que empunha a garrafa, um suspiro hesitante e um único gole fazem a recarga de nutrientes e você segue a rotina.
No meio de uma de suas corridas noturnas, você passa em frente a um restaurante na cidade e vê um casal de rapazes conversando de forma afetuosa em torno de um prato de comida, a iluminação permite ver pouco o que é o prato mas você vê algo que não via há tempos: comida com aspecto de comida. Você está completamente satisfeita pois já tomou o seu drinque nutritivo do dia mas a visão e o cheiro que emana desse restaurante te trazem algo a mais. Algo mais do que eficiência, algo mais do que atendimento de necessidades fisiológicas, algo mais do que puramente repor energias…
Você chega mais perto do estabelecimento e tomada por todos os sentidos decide entrar e pede um prato igual ao do casal. A primeira garfada é puro sabor, tempero e textura. A segunda garfada lembra a comida da sua avó. A terceira lembra o almoço de domingo. A refeição se desenrola com calma e você observa lentamente o arranjo do prato e talheres sobre a mesa, a decoração à sua volta, as diferentes texturas dos ingredientes, as cores bem como as formas dos alimentos e percebe que não dá pra viver como máquina da maneira como se anuncia na ideologia imagética dos vídeos curtos. Lidar com tudo o que te faz humana da forma mais prática e racional possível para atender apenas demandas operacionais e energéticas do corpo faz com que necessidades fundamentais deixem de ser atendidas. O prazer e a beleza são, afinal, alimentos imprescindíveis.
Foi só um pesadelo
Um peso pesado caído na lona
O castelo de areia desmorona
Paz na terra em transe profundo
Estava na minha peregrinação rotineira pelas redes sociais quando recebi o anúncio de uma bebida que promete substituir uma refeição completa e mostra as vantagens da praticidade de repor nutrientes assim e comecei a pensar em como a eficiência e a performance de eficiência fazem a gente, enquanto criaturas desse mundo que produtiviza tudo, vivermos de uma forma mais cinza e pálida inclusive nas refeições.
Esse texto foi escrito nas minhas viagens de ônibus a caminho do trabalho ouvindo “Canibal Vegetariano Devora Planta Carnívora” dos Engenheiros do Hawaii de onde tirei as citações que aparecem nele. A revisão dentro do 679 Méier x Grotão não é exatamente a coisa mais fácil de ser feita, então peço perdão por qualquer eventual errinho que apareça aqui.
Linhas paralelas
Dessa vez alguns textos com temática similar que escrevi aqui na newsletter.
Abraços e até depois!
diego b
uau, que texto incrível! me prendeu tanto, eu não conseguia parar de ler. uma ótima reflexão sobre essa produtividade "robotizada".
Ô Diego, que conto bom!