Quantas vezes você já foi amado? | Insanidade Artificial #24
Baco Exu do Blues, Beyoncé, amor e a construção da autoestima.
Vou começar o texto de hoje com uma pergunta aqui pra quem está lendo: vocês se acham bonites? Se sim, desde quando? Se não, desde quando?
“Foram 25 anos pra eu me achar lindo” diz Baco Exu do Blues em “Autoestima”, faixa do seu álbum QVVJFA?, acrônimo para “Quantas Vezes Você Já Foi Amado?” e ao longo de todo o trabalho o rapper nos leva a refletir sobre o que é se amar e ser amado enquanto um corpo negro no mundo.
QVVJFA? abre com “Sinto Tanta Raiva…” e já nos primeiros versos sentimos como o ódio de si que a sociedade impõe a pessoas pretas prejudica a relação dessas pessoas com o amor a si e aos outros. Ao cantar “sinto tanta raiva que amar parece errado” Baco coloca num único verso algumas muitas questões acerca da agressividade que se espera de um homem negro e como essa agressividade direcionada a si destrói aos poucos qualquer possibilidade de autoestima e direcionada aos outros só reforça estereótipos negativos. Ao longo dessa faixa vemos o rapper baiano sinalizando alguns marcadores de ascensão social e como, mesmo com isso, a leitura que a sociedade tem dele, por ser um homem negro, não muda. Ter acesso a itens de luxo e exposições de arte moderna não te faz “um deles”, muito pelo contrário, só levanta mais hostilidade por parte dos brancos e também de outros integrantes da comunidade negra como se, ao sair do local socialmente esperado para uma pessoa negra que é a subalternidade, ele estivesse indo contra seu povo. Esse lugar é solitário e faz a pessoa nessa situação duvidar da capacidade de ser amado por não se sentir pertencente a nenhum mundo.
Em “Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social” a psicanalista e psiquiatra Neusa Santos Souza aborda esse tema em profundidade, partindo da tese de que o processo de construção de identidade do negro e sua aceitação são desafiadores e violentos porque o nosso ideal do eu enquanto sociedade é um ideal branco.
“É a autoridade da estética branca que define o belo e sua contraparte, o feio, nesta sociedade classista, em que os lugares de poder e tomadas de decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. (…) É essa mesma autoridade que conquista, de negros e brancos, o consenso legitimador dos padrões ideológicos que discriminam uns em detrimento dos outros”
Conciliando a psicologia de Freud com a filosofia de Frantz Fanon, Neusa traz relatos de pessoas pretas em ascensão social que em muito se assemelham aos conflitos cantados por Baco em QVVJFA? como a perda do direito à espontaneidade e a necessidade de sempre ser mais e melhor para sentir que é digno de atenção e afeto.
Quando Baco diz que levou 25 anos para se achar lindo, associo ao fato de que até pouco tempo atrás ele era gordinho e muito recentemente assumiu um “shape” sarado e passou a ser visto como alguém desejável nas redes sociais só depois de performar o estereótipo de beleza no homem negro que só aparece quando tem um corpo forte e definido como o seu agora e esse desejo repentino também assusta e é violento como ele canta na mesma canção “Sempre tive o mesmo rosto, a moda que mudou de gosto / E agora querem que eu entenda seu afeto repentino” E justifica a busca pelo corpo padrão dizendo “Eu só tô tentando achar a autoestima que roubaram de mim”.
A relação conflituosa com o amor que Exu do Blues demonstra em suas rimas é resultado da violência imagética e psicológica a que somos submetidos a todo tempo enquanto pessoas pretas e em que constantemente nos perguntamos se já fomos amados ou pior: se sequer merecemos ser amados.
O álbum encerra com “4 da Manhã em Salvador”, uma canção de ódio e vitória sobre quem olha torto pra ele onde numa das linhas Baco diz que faz rima “como Moxca pinta quadros” e essa citação é interessante porque o artista baiano Moxca trata majoritariamente sobre a questão do corpo negro no mundo capitalista tardio e digital e as diferentes maneiras de enxergar estes corpos negros. Mesclando arte tradicional e digital, o artista afrofuturista defende que o corpo e a comunicação são tecnologias poderosas porém, na cultura hegemonicamente branca, a exploração é um dispositivo instalado de fábrica pela sociedade no corpo negro para que se veja apenas como um corpo trabalhador, destituído assim de toda sua subjetividade para a construção de um “corpo-função”, maquínico. Em suas artes híbridas entre o mecânico e o orgânico mostra como a cultura dominante promove a automatização de corpos racializados como forma de produção de máquinas de trabalho. Como protesto e provocação, Moxca reforma processos de anatomia na construção de maquinário, criando humanoides não utilizáveis, não explorados, livres, máquinas inúteis buscando apenas o prazer e o belo com sua estrutura, construindo uma autoestima afro através da tecnologia mais primal que existe: seu próprio corpo.
Crescendo enquanto um nerd negro da periferia frequentando espaços de arte e cultura na capital, não conseguia me enxergar enquanto alguém bonito e durante muito tempo rejeitei as culturas negras para me adequar ao ideal estético e artístico que a sociedade demanda. “Tudo bem ser negro e espertinho, desde que você saiba que o verdadeiro bonito e o verdadeiro erudito vem do branco” era a mensagem implícita nesses espaços. Demorei a me entender como negro e a me relacionar com a cultura dos meus pares por isso. Nesse processo, figuras como os Racionais MC’s, MV Bill e Emicida me ensinaram o ódio de raça e classe que eu precisava ter para seguir em frente e ocupar os espaços que não foram desenhados para pessoas como eu. No entanto, foi só quando a Beyoncé lançou o clipe de Formation que eu pude ter outra perspectiva sobre a minha própria racialização. Veja bem, eu sei que outros artistas falaram disso antes, “Black is beautiful” não é nada novo mas o meu estalo pessoal foi quando vi a maior artista pop da minha geração cantando “I like my baby hair, with baby hair and afros, I like my negro nose with Jackson Five nostrils” que percebi pela primeira vez que eu poderia ser bonito também. Não que eu tenha aceitado isso de cara, na real ainda luto na construção de uma autoestima, mas naquele momento vendo minha cantora pop favorita e um mulherão da p@$$% dizendo algo como “eu sou negra sim, minha beleza não existe apesar disso mas sim vem a partir disso e eu gosto do que vejo” que comecei a pensar que talvez tivesse sim alguma beleza em mim e que talvez, só talvez, eu merecesse ser amado e admirado por isso.
Linhas paralelas
Esse texto maravilhoso da
sobre o corpo numa perspectiva do olhar da sociedade e do olhar próprio.A entrevista do Moxca ao Terra discutindo as bases da sua produção artística com o incrível Igor Simões.
A última entrevista gravada por Neusa Souza Santos ao programa Espelho com Lázaro Ramos.
Obrigado por ler até aqui e até uma próxima edição!
Diego Bonadiman
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