De repente eu percebi que tinha um corpo | Insanidade Artificial #02
Sério mesmo, foi só um dia desses
O título não é nenhuma piada, do nada eu percebi que eu existia num corpo e foi uma parada meio que aterrorizante. Deixa eu tentar explicar. Sim, eu cantei “cabeça, ombro, joelho e pé” com o Xuxa Só Para Baixinhos como toda criança dos anos 90 e, sim, eu mexia em partes do meu corpo que o pastor dizia que não era pra mexer quando era adolescente mas nunca dei muita importância a essa existência física, entende?
Crescendo numa cultura evangélica, o importante era cuidar da alma, whatever that means e o corpo era pra ser suplantado, suprimindo os terríveis prazeres da carne em prol de uma vida espiritual plena, whatever that shit means então o lance era ler bastante a bíblia e os livros que falavam sobre a bíblia e ignorar que a alma tá instalada numa coisa física porque essa coisa física é só um veículo temporário pra sofrer até o juízo final.
Mesmo quando secularizei minha visão de mundo, desenvolvi minha vivência de forma muito apartada do corpo. Cultivei bastante leitura, referências de arte e música no meu período de formação como forma de ignorar a nave que transportava aquela cabeça pra cima e pra baixo. Embora eu até gostasse de alguns esportes nunca me empenhei muito porque via a prática como coisa que só os valentões que pegavam no meu pé gostariam, logo seria dar vazão a um assunto que na minha visão da época era oposto ao desenvolvimento do que eu tentava buscar que era um entendimento proto-científico do mundo, uma curiosidade enciclopédica sobre tudo à minha volta menos sobre o que me constituía.
Não é que eu não tivesse nenhuma consciência sobre essa matéria. Com uns oito anos de idade caminhando sozinho pra escola, uma viatura se aproximou de mim na calçada e o policial cutucou minha bochecha com a ponta do fuzil e depois saiu andando normalmente. A conselho do meu pai, passei a nunca mais sair de casa sem documento de identificação e sempre responder com “sim, senhor, não senhor” se fosse parado por um policial. Aí eu saquei que eu era um corpo preto no mundo.
Morando numa área pobre da cidade com pouquíssimas condições financeiras, prestar muita atenção no corpo era um problema, se eu prestasse atenção ia ver que a respiração ficava prejudicada pelo pó de cimento das paredes mal emboçadas, se eu prestasse atenção ia ver que o corpo ficava sempre suado e acnéico porque a ventilação não era o suficiente, se eu prestasse atenção ia ver que as costas doíam por causa do colchonete fino no chão da sala onde dormia, se eu prestasse atenção ia ver que tinha uma dor de cabeça incessante por querer ler quando a iluminação não era suficiente, se eu prestasse atenção ia ver que não tinha disposição pra correr com as outras crianças porque tinha tomado só o café da manhã e não sabia se teria outra refeição no dia, bebe água e dorme cedo que passa, meu filho. Ignorar o corpo foi um mecanismo de sobrevivência pra suportar. Os desenhos, as animações, os gibis, os livros e o rádio eram meu alimento e me distanciavam do sofrimento desse corpo.
No começo do relacionamento com a minha companheira, ela me deu um sabão(piadinha não intencional) porque eu passava shampoo de forma muito desordenada na cabeça e não percebia o que eu estava lavando, algumas partes ficavam secas e outras com o shampoo todo e, embora isso não me fizesse ficar menos cheiroso, eu não tinha me ligado que isso representava uma total desconexão com o corpo que eu tenho. E foi absurdamente assustador perceber que existia numa estrutura assim.
Aos poucos nessa convivência ela foi me mostrando como prestar atenção nessa estrutura com mais presença vendo o que tinha de bom e o que tinha de ruim ali. O que estava em bom funcionamento e o que precisa de um cuidado maior pra ficar legal. O centro de comando é importante mas a nave não voa se as peças não estiverem bem encaixadas e lubrificadas, saca?
Ainda é um processo em andamento, complicado entender depois de tantos anos de negligência mas tenho tentado porque é esse corpo que me permite ler o que eu gosto de ler, tocar os instrumentos que gosto de tocar, fazer os desenhos que gosto de pintar, beijar a minha amada todo dia de manhã e brincar com nossos cinco gatos com mais disposição. Se eu mantiver esse corpo aqui legal, vou poder desfrutar de forma muito mais proveitosa e presente o contato com esses outros corpos que gosto tanto e compartilham o espaço comigo.