Ônibus em chamas, dentadura e cochilo perdido | Insanidade Artificial #50
TÁ PEGANDO FOGO, BICHO! Crônicas do transporte público
Notinha rápida aqui: o substack por algum motivo me disse que o texto de hoje é extenso demais para ser exibido no e-mail. Então, caso ele saia cortado ou com algum erro de exibição, é só clicar no link “abrir no navegador” que vai estar em algum lugar desse e-mail para ler a postagem completa. ;)
Estava pensando outro dia sobre como durante um tempo eu senti muita falta do ramal Japeri dos trens da Supervia. Ele era realmente muito bom e eu não dava seu devido valor. Sempre tinha alguma coisa interessante acontecendo pra me distrair, todo aquele contato humano maravilhoso, e o mais importante de tudo: eu estava muito mais seguro do que quando eu passei a andar regularmente de ônibus. Você deve estar pensando que as ondas de calor apocalípticas dos últimos tempos torrou meus miolos e você tem grandes chances de estar certo mas acho que esse texto vai fazer você concordar comigo.
Durante a graduação andava no espetacular 420T (aquele mesmo onde eu já apanhei e ganhei um show particular), e ele quebrou tantas vezes no meio do caminho que já tinha virado até piada na rodovia Presidente Dutra, todo mundo passava no ponto e perguntava se já quebrou algum 420 naquele dia e, se não bastasse isso, eu quase morri queimado algumas vezes. Um pequeno detalhe inconveniente na rotina, nada de mais, a gente acostuma né?
Nessa época acordava antes das cinco da manhã quando estava em aulas pra poder ter uma remota possibilidade de chegar a tempo pra aula das oito. O resultado disso é que dormia profundamente como uma pedra dentro do ônibus. Tanto que quando virava noite ou dormia tarde fazendo trabalho, computava as horas da condução como constituintes do tempo de sono do dia. Ê tempo bom que não volta…
No começo de um semestre em 2014, dormia tranquilo como o Kirby no busão quando fui acordado por um estranho cheiro no ar. Tirei os fones de ouvido para sentir e ver melhor o que não é sinestesia para deixar esse texto que já está enorme de alguma forma mais poético, meus amigos, meu cérebro realmente funciona desse jeito, vai entender e comecei a perceber uma certa correria e a formação de fumaça na frente do ônibus. Estava sonolento ainda em estado de recém-acordado mas anos de Japeri me treinaram a lidar com situações de pânico generalizado: é só baixar a porrada em todo mundo coloquei a mochila na frente do corpo e comecei a me dirigir rapidamente até a saída empurrando qualquer um que estivesse à minha frente. O que eu não esperava foi o que aconteceu em seguida, enquanto as pessoas se amontoavam para sair e as chamas começavam a avançar para o fundo do ônibus, caí na seguinte cena:
Estava preso atrás de uma idosa tal como o Mr. Bean usando as escadas, num ônibus pegando fogo. Fiquei desesperado, quase todo mundo já tinha saído e eu atrás de uma senhora que parecia não se importar com a situação e andava lentamente olhando pro chão como se procurasse algo e acabei tendo que usar de força bruta para fazer a vetusta andar mais depressa e escapar do ônibus. Quando todos conseguiram sair, o ônibus simplesmente explodiu, sem brincadeira, não sobrou nada pra contar história(eu tinha uma foto mas acabei perdendo na atualização do meu celular, vocês vão ter que acreditar em mim).
Enquanto esperávamos o ônibus que viria para buscar os passageiros, a senhora se aproxima de mim e diz:
– Desculpa te atrapalhar a sair, meu filho, mas acabei perdendo minha dentadura enquanto corria e tentei procurar antes de sair do ônibus mas não deu.
Por um breve momento fiquei possesso de uma raiva primal, mas logo em seguida a senhora deu um sorriso completamente sem dentes tão doce que derreteu meu coração. E entramos num ônibus que mais parecia um carro de palhaço de tão cheio para seguir a viagem.
Corta pro fim desse mesmo semestre. Logo depois de botar os pés no ônibus meu sentido aranha anunciou que alguma coisa ia dar errado e fiquei ressabiado. O problema é que percebi isso só depois de já ter pago a passagem, ou seja: estava preso ao destino do que quer que acontecesse ali dentro devido ao dinheiro investido que pro universitário não é pouca coisa, diga-se de passagem à época pagar R$ 6,30 num ônibus que circulava nessas condições era absurdo. Quando me formei anos depois, a passagem custava R$9,70 e o aspecto não era muito melhor.
Imediatamente depois de já ter passado da roleta senti um leve cheiro de queimado e fiquei alerta porque ainda carregava as marcas de guerra do incêndio anterior. O ônibus, caindo aos pedaços e se arrastando no trajeto, com dificuldade consegue chegar à rodovia presidente Dutra, uma olhada rápida pela janela revelava uma pista sem muito trânsito à frente. Meu coração quase se enchia da esperança de chegar antes da aula e ainda tirar uma soneca no centro acadêmico, quando o cheiro de fumaça aumenta e vejo todo mundo correndo para a saída do ônibus. Uma rápida escaneada visual na situação me fez ver que o motorista se juntou à massa de desesperados e tentava correr pra fugir sem ter aberto a maldita porta do ônibus. Pensei “Meu pai amado, hoje não é meu dia, meu ano, minha vida! De novo! Mas hoje não vou permitir que nenhuma velhinha fique na minha frente! Não vou” [.
Num rápido impulso ~BruceWillisístico~ realizei um sonho de infância: abrir as alavancas de emergência da janela.
Fala sério, vai me dizer que você nunca olhou pra aquela alavanca vermelha e vistosa e se imaginou abrindo aquilo algum dia? Eu já, muitas vezes. Diga o quanto isso indica problemas psiquiátricos nos comentários deste texto. chutei o vidro e pensei que por ter jogado incontáveis horas de Assassin’s Creed, eu estava habilitado a saltar de grandes alturas sem sofrer grandes danos. Mas o que realmente aconteceu foi isso aqui:
Joguei a mochila primeiro, pulei em seguida amarradão e acabei caindo por cima do meu braço direito, resultando em muitos arranhões e uma dor fenomenal que me rendeu um final de semana inteiro sem poder desenhar ou usar o computador(imaginem um estudante de arquitetura em final de semestre nessa situação, o horror, o horror). O ônibus ficou menos detonado dessa vez e o que veio buscar os passageiros estava vazio, então a continuidade da viagem foi menos insuportável apesar do trânsito grotesco que o acidente gerou.
No mesmo ano sofri ainda mais um incêndio só que esse não foi tão interessante, eu já tava em situação mental de “this is fine” então só segui com a vida normalmente. Saí fisicamente inteiro desses incêndios, porém não saí ileso psicologicamente e jamais vou perdoar a viação Cruzeiro do Sul pelo fato de eu não conseguir dormir mais em viagem alguma. O cochilo na condução é um direito sagrado do proletariado e fui privado disso pelo resto da minha vida devido ao trauma causado por estes acidentes, pegarei em armas quando a revolução vier para me vingar dos danos causados a mim por estes inimigos da classe trabalhadora.
Realmente 2014 não foi um bom ano para usar transporte público no Rio de Janeiro. Nenhum ano é na verdade, mas às vezes dá pra sair ileso.
Linhas paralelas
Textos e links que cruzaram meu caminho no infinito da rede esses dias.
Um inventário de saudades - Helena Cunha Di Ciero
Abraços e até depois!
diego b
[twitter]
[bluesky]