A baleia é mais segura que um grande navio | Insanidade Artificial #56
Bíblia, arte e teimosia.
Notinha rápida aqui: o substack por algum motivo me disse que o texto de hoje é extenso demais para ser exibido no e-mail. Então, caso ele saia cortado ou com algum erro de exibição, é só clicar no link “abrir no navegador” que vai estar em algum lugar desse e-mail para ler a postagem completa. ;)
Esses dias saiu a notícia sobre um rapaz venezuelano que foi abocanhado por uma baleia jubarte no Estreito de Magalhães e logo depois cuspido de volta ao mar e eu não consegui sentir nada além da mais pura inveja dele. Antes de você discar o número da interdição psiquiátrica, deixa eu tentar contar umas histórias.
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Se a sua educação envolveu algum pouco de cristianismo, você deve ter passado em algum momento pela história bíblica de Jonas. Se não, deixa eu tentar resumir.
Jonas era um profeta de Israel que recebeu de deus a missão de anunciar a mensagem de que a cidade de Nínive seria destruída caso eles não se arrependessem de seus pecados e passassem a adorar Javé, o deus de Israel. Aquele amor celestial maneiro que a gente bem conhece no Velho Testamento. Só que o povo de Nínive era dos inimigos mais truculentos de Israel e já tinha tocado o terror ali por aquelas bandas e Jonas, tremendo na base de encarar a Gaviões da inFiel do Rio Tigre e puto por ter que cruzar o deserto pra pregar pra vacilão decide desobedecer e vai na direção oposta.
Jonas então pega um navio pra ir pra Társis que, pros israelitas da época era tipo ir até o fim do mundo, ou Japeri. Javé vê a petulância de Jonas e pergunta “vai pra onde a bonita?” e manda uma tempestade cabulosa bagunçar o navio. Os marinheiros ficam se borrando de medo e Jonas, percebendo a merda que fez fala pra eles o jogarem ao mar que a tempestade cessaria. Dito e feito, os Popeye lançam o profeta fujão na água e logo o mar se acalmou. Caindo no mar, Jonas é engolido por uma “baleia” e fica em seu ventre por 3 dias, fazendo orações e pedindo perdão a deus pelo vacilo.
Deus, com toda sua misericórdia, depois de aterrorizar uma tripulação de navio inteira e fazer um profeta que tinha lá seus motivos pra fugir ficar morando nos intestinos fedidos de um bicho, manda a “baleia” vomitar Jonas na praia em Nínive. Chegando lá, agradecido a deus por ter recebido a fragrância Eau-de-Merde by YHWH(recuse imitações) prega a mensagem de deus ao povo de Nínive que, vendo um homem saindo inteiro de dentro do bichão só consegue pensar “É DEUS MAMÃE” e se arrepende de seu caminho de adoração a deuses pagãos e reconhece Javé como o pica das galáxias.
Jonas - Capítulos 1 ao 4 (Bíblia NVC- Nova Versão Carioca)
Provavelmente você já ouviu essa história quando criança em alguma escola bíblica ou catecismo e só achou curiosa a mensagem sobre obediência e a maneira como deus sempre consegue o que quer(que poderia ter usado a onipotência e só ter levado o profeta por teletransporte ou sei lá, via águia pra Nínive mas decidiu fazer o maior mousse). Mas eu ouvi essa história na infância e fiquei obcecado. Tão obcecado que recitei de cabeça com as mesmas palavras da Bíblia como você pôde ver logo acima.
Fiquei absurdado com a ideia de uma baleia engolindo uma pessoa e fiz o que qualquer criança chata faria: comecei a ler maniacamente sobre o assunto de todas as formas que podia. Não tinha internet em casa na época mas tinha acesso a livros na escola e na biblioteca do meu tio que acumulava livros sobre quase tudo em casa e mergulhei fundo(no pun intended) na vida marítima. Uma das primeiras coisas que descobri nessa pesquisa é que dificilmente uma baleia conseguiria engolir um ser humano. Uma vez que baleias, apesar do tamanho, se alimentam majoritariamente de pequenos peixes, krill e algas, sua garganta tem um diâmetro muito reduzido e, além disso não tem dentes, o que seria extremamente necessário pra ajudar a estraçalhar um corpo humano caso precisasse passá-lo por sua garganta diminuta, no lugar tem um sistema de cerdas, tipo uma persiana bucal que permite filtrar o alimento.
Como disse, eu era uma criança chata e depois de uma semana imerso(novamente, sem piadinha intencional) levei a questão pra professora da escola dominical na igreja que me explicou uma coisa que anos depois mexeria bastante com a maneira como enxergo as coisas. A professora pacientemente me explicou que a Bíblia não foi escrita originalmente em português e que a versão que se lia na escola dominical simplificava alguns termos e “baleia” só fui usado porque é o jeito mais fácil de uma criança entender que Jonas foi engolido por um “grande peixe”, termo que aparecia na sua “bíblia de adulto”. Fiquei bolado, primeiro porque havia sido “levado ao erro” por uma versão simplificada da história, segundo porque, como assim, eu preciso ler uma versão da Bíblia diferente só porque sou criança? Quer dizer que eu não tenho capacidade pra entender a palavra de deus? Mas deus não deu inteligência pra todos nós? Muitas questões pipocaram na cabeça aro 46 desse que vos fala e nenhuma foi respondida pelo simplório “Ore a deus que ele vai te responder” da professora da escola dominical, até entendo que era domingo de manhã e ela tinha uma turma de mais umas vinte crianças pra cuidar enquanto os pais assistiam o culto mas, poxa, eu merecia uma resposta melhor.
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“Mestre Jonas” do trio Sá, Rodrix e Guarabyra traz uma leitura interessante pra história de Jonas. Embalado por um arranjo de Hermeto Paschoal, o Jonas dos roqueiros rurais também foge buscando paz.
A música começa anunciando o interior da baleia como a casa de Jonas, um local de conforto e tranquilidade e, bem, ficar dentro do trato digestivo de um animal não me parece ser a coisa mais confortável do mundo mas lembrando que a música saiu no álbum “Terra” de 1973, época de ditadura comendo solta e coisa e tal dá pra entender um pouco de onde isso tudo veio. A baleia é um refúgio ou uma prisão? Esse confinamento é mesmo voluntário? O silêncio e a paz são reais ou são apenas maneiras que Jonas encontra de tentar manter a sanidade num mundo sufocante e envolto pelo terror?
Afirmar aos quatro ventos que é um santo homem e que está comprometido com o interior da baleia é uma maneira de tentar passar batido pela repressão do regime e chegar inteiro em casa. O Jonas de Sá, Rodrix e Guarabyra não é um herói revolucionário, muito menos um profeta enviado por deus. Esse Jonas é um cara comum tentando sobreviver com um pouco de normalidade num mundo em que todo mundo está a um passo de ser engolido e digerido. Covardia? Conformismo? Talvez. Mas chegar ao fim do dia vivo não é um objetivo tão nobre quanto qualquer outro?
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Gosto muito das representações pré-Renascimento de Jonas e o peixe. Sempre fiquei intrigado vendo como os artistas eram criativos e escolheram diferentes formas para representar algo de certa forma desconhecido: uma criatura marinha capaz de devorar um homem adulto.
Lendo um pouco sobre o assunto, descobri que essa diversidade de interpretações artísticas se deve principalmente à diversidade de interpretações que o texto hebraico permite para o termo גָדּ que, ao pé da letra seria algo como “monstro marinho” mas, também é usado para qualquer coisa do mar que pode ser ou não ser kosher(animais que poderiam ser ingeridos de acordo com as leis do velho testamento, o que no mar exclui moluscos e crustáceos e na terra exclui os porcos). Por causa do caráter oral de divulgação dos mitos e histórias judaicas é possível ler esse termo como diferentes criaturas. No contexto de Jonas no texto original por causa do grande tamanho com que se descreve o animal fica subentendido que o “monstro marinho” é da classe dos “Tannin”, ou os grandes monstros marinhos, o que pode incluir o Rahab, um dragão marinho de várias cabeças ou até o Leviathan, a mais poderosa besta dos mares, uma serpente de proporções colossais. As múltiplas leituras sobre um mesmo termo renderam múltiplas representações artísticas acerca desse enredo ao longo da história do judaísmo e cristianismo.
Séculos depois dos textos serem escritos, formou-se a septuaginta que foi o esforço de tradução do texto hebraico para o grego koiné, que era a língua mais falada na região mediterrânea. Durante o processo de tradução, muitos termos foram simplificados e traduzidos para melhor corresponder ao grego popular e o termo κήτος que hoje lemos como cetáceo de certa forma deram a fundação para a compreensão do monstro marinho de Jonas como uma baleia, interpretação essa que se difunde e ilustra bíblias para crianças ao redor do mundo.
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A história de Jonas é um dos mitos que eu acho mais bacanas na tradição judaico-cristã porque mostra uma pessoa teimosa pra caralho. Tão teimosa que uma das criaturas mais poderosas do bestiário bíblico, que representa a força e a revolta dos mares, obedece a ordem dos céus de devorar o profeta, algo impensável para um ser de puro caos mas Jonas, mesmo sendo humano, não consegue seguir a ordem e teima e bate o pé pra provar seu ponto e, nesse sentido, é tão bravo e rebelde quanto a própria fera. E, mesmo que no final, ele se foda um bocado e acabe executando a missão, foi preciso que Javé, o deus dos deuses, movimentasse o monstro mais temível pra que isso acontecesse e isso é prova de uma força de vontade e uma birra inacreditável. E, sei lá, acho que me identifico bastante com gente teimosa pra caralho.
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Linhas paralelas
Escrevi esse texto ao som do incrível álbum “Terra” de Sá, Rodrix e Guarabyra. Misturando elementos da música sertaneja com o rock psicodélico e progressivo eles criaram uma estética única que surpreende mesmo depois de 50 anos do lançamento.
Uma das minhas bases de pesquisa pra esse texto foi o artigo Jonah and Leviathan: Inner-biblical allusions and the problem with dragons de Scott B. Noegel que trata bastante da linguística do texto bíblico mas também pincela sobre representações artísticas dessa história. Vale muito a pena a leitura se você se interessa por exegese bíblica.
As imagens desse texto foram retiradas dessa coleção de manuscritos envolvendo a história de Jonas no GetArchive, um tesouro pra quem gosta de ilustrações antigas.
Essa edição da newsletter da Leda Cartum também é um deleite pra quem gosta do mar e se você leu até aqui, acho que você gosta.
O mar e a água são temas recorrentes no Insanidade Artificial então seguem algumas edições da newsletter em que tratei desses assuntos
Obrigado por ler até aqui e espero ver você nos comentários ou numa próxima edição.
Abraços e até depois!
diego b
MDS EU AMEI!
Amo amo baleias e chega deu vontade de quadrinizar esse teu texto