O fundo do mar, o fundo de mim, o que eu desconheço | Insanidade Artificial #11
“As águas-vivas não sabem de si”, o último álbum do Low Anthem e encarando o que não sei sobre mim mesmo
I.
“O silêncio está preenchido com sons. É como o branco, onde se juntam todas as cores.”
Como todo nerd fanático por sci-fi, adoro ler sobre o espaço, outros mundos, o desconhecido que a gente vê um pedaço mas ainda não entende como um todo. Recentemente com a história do submarino desaparecido, me peguei pensando em como o fundo do mar é tão alienígena quanto qualquer mundo extraterrestre que a ficção científica tenha apresentado.
Lendo “As águas-vivas não sabem de si” da
parei pra refletir sobre o desconhecido em diferentes escalas e como isso assusta e fascina a gente, sabe? A imensidão inexplorada do fundo do mar, o vazio cósmico, o ser humano que está aí do seu lado e aquilo que está dentro da sua própria cabeça.Não sei se é porque estava retomando meus estudos em meditação enquanto fazia a leitura desse livro mas a forma como a Aline coloca essa busca por ir mais fundo que ecoa ao longo de todo o livro me lembra muito algumas práticas de meditação e a vontade de se entender olhando em áreas cada vez mais profundas e como isso pode ser realmente desconfortável e destruir algumas coisas no meio dessa busca. Nossas formas rígidas e certezas são quebradas em função do entendimento de uma pequena fração do que está lá dentro e nem sempre dá pra voltar e contar o que viu.
“As águas-vivas não sabem de si” é um livro de muitas perguntas sobre a existência na forma de um sci-fi intrigante, aquele tipo de livro que te coloca bolado™️ mesmo muito depois que ele acaba, tanto que estou retornando a ele alguns anos depois de ter lido pra explorar os cantos que ficaram escondidos pelo breu subaquático.
II.
ansiosa pelo conhecimento, mas também com medo, a boneca de sal começou a entrar no mar. quanto mais entrava, e quanto mais se dissolvia, mais compreendia a enormidade do mar e da natureza, mas ainda faltava alguma coisa:
“afinal, o que é o mar?”
então, foi coberta por uma onda. em seu último momento de consciência individual, antes de diluir-se completamente na água, a boneca ainda conseguiu dizer:
“o mar… o mar sou eu!”1
Cada artista tem um jeito diferente de criar: tem gente que entra num processo de imersão e isolamento, tem quem vai se conectar com o mundo e tem quem cria a partir do que a vida coloca de bom e ruim no seu caminho. The Salt Doll Went To Measure The Depth Of The Sea, álbum de 2018 do The Low Anthem tem origem logo depois de um acidente com a van da banda que destruiu todo seu equipamento. Sem seus instrumentos mas com muitas ideias na cabeça, os caras tiveram que ser criativos usando instrumentos com os quais não estavam acostumados, samples e outras sacadas pra dar vazão ao conceito do álbum. A experiência traumática associada à vontade de criar fez com que o primeiro rascunho desse trabalho ficasse pronto em pouco mais de 15 dias e o resultado é um álbum que evoca emoções de forma que é impossível ficar indiferente ao que acontece nele.
O conceito todo do registro gira em torno da fábula da boneca de sal que deseja conhecer o mar mas, quanto mais ela conhece, mais partes de si ela perde. Diversos desdobramentos sobre as interpretações dessa história são apresentados ao longo de canções curtas (com poucas faixas passando da marca dos três minutos) colocando o ouvinte dentro desse universo lírico criado. Instrumentalmente, o conceito é reforçado por um som atmosférico e sentimental com texturas e cadências que evocam a sensação de desolamento diante da imensidão do mar e melodias que trazem um pouco de conforto dentro dessa solidão toda.
O grande forte do disco é brincar com a dicotomia entre o desconhecido e a familiaridade, remetendo à ideia de ter que destruir a si mesmo para poder conhecer algo mais profundo, presente na fábula. Isso fica muito claro logo no começo do disco com “Bone Of Sailor, Bone Of Bird” com uma melodia simples de poucos acordes no teclado e uma textura dissonante da percussão que faz com que em nenhum momento você fique totalmente confortável com a leveza e simplicidade da melodia, desconstruindo e reconstruindo o tempo todo a sua percepção.
As texturas da percussão aparecem durante todo o álbum e são o que dão profundidade e ajudam na imersão do ouvinte nas letras. Conforme o disco avança elas vão ganhando mais importância e ruído refletindo o estado de confusão que o desbravamento de si algumas muitas vezes produz. “Give My Body Back” e “Coral Crescent” são ótimos exemplos disso com uns poucos movimentos de sopro nas duas faixas e a textura eletrônica da percussão trazendo o jogo sutil entre calma e confusão que estes momentos do disco pedem.
O álbum se enfraquece quando abandona a dualidade entre o folk e o eletrônico, indo totalmente numa direção ou outra. “Toowee Toowee” que é quase totalmente folk e “Cy Twombly By Campfire” que vai mais fundo no eletrônico, embora importantes pra construir conceitualmente os momentos em que se encontram são faixas que não tem muito da identidade e criatividade demonstrada no restante do disco.
Uma sensação presente em todo o disco é a de circularidade, tanto lírica quanto instrumentalmente você é levado a grandes distâncias, desbrava sentimentos e texturas e volta pra onde começou. Tudo é muito claro e bem executado e assim como a história propõe, cada vez que você mergulha nele, você volta diferente e conhecendo um pouco mais do que acontece lá no fundo.
III.
De repente eu tive que olhar pra dentro e me assustei com o que estava ali.
Não é como se eu não tivesse o hábito de olhar pra dentro da própria cabeça. Embora eu não goste de assumir o “título”, sou artista e olhar pra dentro faz parte do rolé. Mas passei a maior parte da minha vida fingindo que não sentia nada em favor de uma suposta calma que sempre esperaram de mim.
Esse ano estou sendo obrigado a confrontar o que eu sinto e externar isso de uma forma que não estou habituado e é estranho porque, por sempre ter guardado, tem coisa que eu sinto e não sei nem como dar nome.
Enquanto não consigo nomear, sigo tentando compreender e explicar pra mim mesmo o que sinto através das imagens que é a minha forma de tentar exprimir o que é difícil verbalizar, indo nas profundezas e retornando não com palavras pra teorizar mas com imagens que reflitam o que eu vi. Nem sempre fica claro pra quem está de fora mas o meu mundo é majoritariamente visual, então dar forma com linhas, cores e texturas é o que mais faz sentido no meu entendimento e desentendimento de mim.