O que fazer quando não para de doer? | Insanidade Artificial #22
O trauma de Batman e Coringa, o peso do Korn e a tristeza de Frida Kahlo
I.
Nem sempre uma ferida dói pelo impacto da ferida em si mas sim por um acúmulo de marcas ao longo de uma vida.
Na abertura de Batman, Three Jokers de 2020, um Batman ferido em batalha chega dirigindo cambaleante e destrói as lápides de seus pais no terreno da mansão Wayne. Entrando na BatCaverna, recebe os cuidados do mordomo Alfred que lhe pergunta o que causou o ferimento dessa vez. Bruce Wayne responde que foi um guarda-chuva, mas nos quadros seguintes vemos cicatrizes sobrepostas e flashbacks de muitas outras lutas com diferentes vilões.
Esse tema, da ferida antiga que é reaberta e volta a doer perpassa grandes histórias do homem morcego mas nessa minissérie de Geoff Johns, Jason Fabok e Brad Anderson, o tema é explorado não apenas para Bruce Wayne como também para seus companheiros e, de certa forma, filhos: Jason Todd, o antigo Robin e atual Capuz Vermelho e Barbara Gordon, a Batgirl, mostrando como um trauma não processado afeta não só quem sofreu com ele mas também a todos que estão por perto.
A minissérie começa com um assassinato e outros dois crimes cometidos em localidades distintas de Gotham, aparentemente de forma simultânea pelo Coringa. Batman começa sua investigação e por conta do caráter inusitado da situação acaba esbarrando com BatGirl e Capuz Vermelho que estavam conduzindo suas investigações de forma independente.
Ao longo da minissérie acompanhamos as três encarnações do Coringa em seus encontros com os integrantes da Bat-Família e seus traumas e aos poucos percebemos como os violentos encontros passados do Coringa com os vigilantes moldaram suas vidas inteiras.
Em Batman: A Death in the Family, de 1988, Jason Todd, ainda uma criança atuando como Robin foi sequestrado pelo Coringa e agredido com um pé de cabra a ponto de ser dado como morto por Batman. Esse encontro com o Coringa o fez se afastar de Bruce Wayne e de sua filosofia de não matar os criminosos com as próprias mãos mas sim entregá-los à justiça. Depois de um período fora de atividade, Jason Todd retoma a função de vigilante sob a identidade de Capuz Vermelho e, por se sentir abandonado por Batman e pela justiça, decide atuar como um violento combatente do crime, utilizando técnicas de tortura para suas investigações e matando sem hesitação alguma qual quer criminoso que cruze seu caminho. A encarnação do Coringa que o atormenta em Three Jokers traz de volta à tona o medo do abandono e ânsia por violência de Jason Todd a ponto de fazê-lo constantemente perder o controle e duvidar de sua capacidade de se relacionar com outras pessoas de forma saudável.
Barbara Gordon encontrou o Coringa de forma trágica em Batman: The Killing Joke, história de 1988 em que, para testar os limites do Batman, o Coringa sequestra, violenta e atira em Barbara de maneira que a deixa paraplégica por anos. Determinada a evitar que outras mulheres passem pelo que ela passou, Barbara assume a identidade de Batgirl e passa a caçar criminosos de forma independente utilizando suas habilidades de investigação e informática. O Coringa que a aflige em Three Jokers desperta nela sua repulsa à violência provocando Jason Todd enquanto está encurralado pela dupla Batgirl - Capuz Vermelho, Todd reage à provocação matando essa encarnação do Coringa e Barbara se afasta dele por não concordar com seus métodos.
Com o desenrolar da minissérie, vemos que o plano da encarnação do Coringa que angustia Bruce Wayne é usar produtos químicos para criar mais um Coringa, não apenas como um inimigo à altura de Batman enquanto herói e sim, um inimigo que signifique algo a nível mais profundo, pessoal a Bruce Wayne e faz isso tirando da cadeia Joe Chill, o assassino dos pais de Bruce no crime que o traumatizou e moldou toda a sua vida para se tornar o Coringa definitivo. Batman percebe que as três encarnações de Coringas que infernizaram a ele, Jason e Barbara por anos a fio só existem por causa deste único episódio e num ato inesperado salva Joe Chill das mãos do palhaço criminoso, num gesto que pode ser entendido como um perdão a Joe Chill pelo que ele fez.
O Coringa, enquanto personificação da antítese do Batman, reconhece que ao perdoar Joe Chill, o local de maior carrasco da tragédia pessoal do homem morcego se torna vago para que ele, sendo o seu maior inimigo na vida adulta, possa preenchê-lo com a dor que causa com seus estratagemas aos companheiros de Batman. Porém, a ferida inicial, um trauma tão profundo que fez Bruce Wayne criar toda uma nova identidade como o homem-morcego para lidar com isso é selada ali, num gesto de compreender e absorver que a dor existiu sim mas não precisa ser a única constante de sua vida. Reconhecer isso não impede Bruce de sofrer e sentir falta dos seus pais, mas o liberta do constante peso do luto, dando local a outras experiências, outros relacionamentos e, porque não, novos sofrimentos.
II.
Quando algo trágico acontece, às vezes somos levados de volta a dores que achávamos que tínhamos superado.
No mesmo ano, Jonathan Davis, vocalista do Korn, perdeu a esposa e sua mãe em um curto intervalo de tempo. Diante da dor, o músico viu que algumas dores simplesmente não param de doer: você aprende a conviver com a ferida mas às vezes ela fica mais latente e incapacitante. Durante seu período de luto, produziu com o Korn, “The Nothing”: um disco pesado, sombrio e emocionante em que tenta lidar com a perda recente ao mesmo tempo que as suas antigas dores decidem das as caras no pior momento possível.
A aflição de Davis é sentida já na faixa de abertura com a fúnebre gaita de fole acompanhada do questionamento incessante “Why did you leave me?”, o vocalista se questiona o porquê de forma sincera e transtornada até explodir num choro nos últimos segundos dessa introdução.
Ao longo das faixas vemos a luta do artista para não sucumbir às trevas de seus pensamentos de dor. “Cold” traz a oscilação entre a vontade de seguir em frente e o frio paralisante da ausência de alguém querido que vem em momentos de luto.
As afinações graves dos baixos e guitarras dão o peso do momento e colocam o ouvinte no mesmo estado mental confuso em que as faixas foram escritas. A alternância entre um estilo de cantar mais choroso e a agressividade dos drives e guturais vocais também realçam o misto de sentimentos conflitantes das letras.
No decorrer do álbum vemos que as dores recentes reacenderam antigos traumas como os abusos e violência física que Jonathan Davis sofreu durante sua infância e adolescência e o somatório disso não provoca nada além de mais aflição. “Idiossincrasy” deixa isso claro com a ira instrumental e vocal que vem do fato de sentir que Deus está te sacaneando durante uma vida inteira após tantos nocautes seguidos. A agressividade de Davis ao afirmar na ponte desta canção “God is making fun of me | He's laughing up there, I can see” mostra que a ira acumulada de constantes lutos uns sobre os outros é um combustível pra continuar quando a cura parece não vir nunca.
Ao fim desse álbum temos “Surrender To Failure” que, ao contrário do que o título sugere, nos traz a aceitação da falha, não como uma aceitação do fracasso mas sim como uma afirmação de que a cura para as dores de uma vida inteira não é um processo linear e faz parte cair e sucumbir aos pensamentos obscuros às vezes desde que sigamos em frente com a ciência de que sempre teremos uma falta como constante no coração. Nas últimas estrofes de “Surrender To Failure”, ao reconhecer que falhou, o instrumental se torna mais sereno: o peso da bateria, baixo, guitarra e do peito dá lugar a um último acorde de piano e ouvimos um suspiro de resignação e um pouco de alívio por finalmente entender que a cura pode não vir mas o sofrimento neurótico pode se tornar apenas mais uma infelicidade dentre outras dentro da sua história.
III.
Poucos artistas lidaram com a dor física e psíquica de forma tão intensa quanto Frida Kahlo. Um exemplo do trabalho com a dor que gosto bastante dentro da vastidão de sua obra é o quadro Recuerdo (el corazón) de 1937, onde a artista expressa sua miséria e ressentimento pela traição cometida por seu marido Diego Rivera poucos anos antes. Neste quadro, seu rosto não tem expressão, mas está cheio de lágrimas. No fundo estava sua roupa de colegial e sua roupa de tehuana e cada conjunto de roupas tem um braço, com Frida Kahlo parada ali, sem braços e chorosa. Ela está parada com um pé no chão e o outro no mar. Seu coração de proporções gigantescas estava pousado no chão a seus pés e pulsava em rios para a paisagem ao fundo. Seu peito foi perfurado por uma barra de aço, e o sugerido balanço da haste expressa pungentemente a sensação de dor. No meio de tanta angústia e sofrimento, ao estar paralisada e sem poder de ação pela aflição de um coração partido e problemas de saúde, Frida se vê amparada, suportada por sua versão menina representada pelas vestes de colegial e sua versão mulher, representada pelo vestido de tehuana. Os braços que ela não tem hoje para lhe confortar vem de outras versões de si mesma, deixando claro que para muitas dores, ninguém além de você mesmo pode lhe dar apoio no que é mais profundo de si.
Linhas paralelas
Algumas newsletters que me ajudaram a refletir durante a construção do texto de hoje.