O afrofuturismo de Gilberto Gil | Insanidade Artificial #12
Ficção científica, Gilberto Gil e o futuro
I.
Lembro de quando criança assistir a animação da Liga da Justiça e dentre as muitas aventuras do panteão heroico da DC Comics, as que eu mais gostava eram as que tinham maior destaque para o Lanterna Verde John Stewart por sempre envolver a temática espacial-científica-futurística de alguma forma, que desde essa época são o que mais me atrai na ficção especulativa e fantasia no geral.
O arquiteto/marinheiro/herói galáctico John Stewart ficou marcado na minha memória e se tornou um dos meus heróis favoritos por ser um dos poucos exemplos de personagens negros se aventurando no espaço que lembro na minha infância. Tive outros heróis negros no mundo dos quadrinhos quando pequeno(um beijo pra Tempestade e pro Super-Choque) mas lembro de poucos com aventuras envolvendo um pano de fundo de sci-fi/futuro/espaço sideral nessa época. Na segunda trilogia de Star Wars, meus filmes favoritos nessa época, só lembro do Mestre Mace Windu, interpretado por Samuel L Jackson e na trilogia clássica o único negro pilotando uma nave era Lando Calrissian. Star Trek: The Next Generation apresentava um futuro utópico de paz na humanidade e entre os planetas e mesmo ali o único negro na tripulação da USS Enterprise era o Tenente LaForge. A ficção científica me acompanha durante quase toda a minha vida com seus mundos fantásticos de tecnologia e avanço pra humanidade mas desde pequeno ficava bolado™ me indagando: o que aconteceu com as pessoas negras como eu no futuro?
II.
O afrofuturismo ganhou a mídia recentemente depois do estrondo que foi o filme do Pantera Negra em 2018 e sua representação de Wakanda, uma utópica civilização desenvolvida por povos negros. O afrofuturismo é um movimento cultural que parte dos conceitos da tecnologia e ancestralidade para projetar um futuro do ponto de vista das comunidades negras diaspóricas, utilizando da ficção científica e das tradições de pensamento dos povos africanos para reivindicar as demandas de mudanças da estrutura racista do sistema social atual através da arte, música, produção acadêmica e audiovisual construindo um imaginário de um futuro de empoderamento da população negra.
Muitos nomes são citados como relevantes para o afrofuturismo como a gente conhece hoje. Desde Sun Ra com seu jazz espacial onde os negros povoam o espaço sideral, passando por Octavia Butler e suas viagens no tempo e distopias, até Janelle Monáe e seus androides andróginos pop. Mas uma figura costuma ficar de fora da arqueologia do afrofuturismo, apesar de ter uma obra que expressa em vários momentos uma visão artística do futuro: Gilberto Gil.
O começo das reflexões de Gil sobre o futuro podem ser traçadas a partir do momento de sua prisão em 1968, quando o músico relata que passou a pensar sobre questões esotéricas e científicas.
“O fato de eu ter sido violentado na base de minha condição existencial – meu corpo –e me ver privado da liberdade da ação e do movimento, do domínio pleno de espaço-tempo de vontade e de arbítrio, talvez tenha me levado a sonhar com substitutivos e a, inconscientemente, pensar nas extensões mentais e físicas do homem, as suas criações mecânicas;..."
“Cérebro Eletrônico” é uma das canções surgidas no cárcere e parece prever algo que ainda estamos tentando entender atualmente: a inteligência artificial dos computadores, com suas vantagens e seus perigos. Apesar do grande poder que a computação traz, para Gil, o cérebro eletrônico ainda é inferior ao impulso humano de criação pois ao computador falta algo primordial que é a consciência da morte, o grande motor de toda inovação, arte e misticismo que a humanidade produziu e produz.
Ainda no exílio, duas outras músicas foram compostas com a temática futurista: “Vitrines” com a sua melancolia astronáutica comparando o isolamento de Gil na prisão com a solidão do vazio espacial e “Futurível” em que traça um panorama do que pode ser um novo estágio da humanidade para além da matéria física, anunciando algo parecido com o que hoje em dia chamamos de transumanismo com a interseção entre as capacidades físicas ampliadas proporcionadas pela robótica e a possibilidade de expansão da consciência que só o espírito humano é capaz de buscar.
Esse trio de canções apareceu no álbum Gilberto Gil de 1969 e são futuristas não só pela temática mas também pela estética, trazendo o uso de guitarras e sintetizadores com efeitos dos mais variados, abraçando a tecnologia musical em função de uma experiência sonora imersiva dentro do que seria esse futuro. Ainda nesse álbum temos “Objeto Semi-Identificado” que traz uma colagem sonora extrema de músicas do próprio Gil e de pedaços de conversas dele com o artista tropicalista Rogério Duarte sobre suas visões de futuro, espaço e religião. Usando uma engenharia de som complicadíssima com mesas de poucos canais e overdubs temos o efeito de sample que hoje em dia é tão comum com computadores nos teletransportando para um diálogo que parece realmente ter vindo de anos luz no futuro.
A viagem no tempo aparece pouco depois que Gilberto Gil retorna em 1972 de seu exílio em Londres na canção “Expresso 2222” imaginando como seria o futuro e numa sacada bastante presente no afrofuturismo atual, o futuro de Gil tem a ancestralidade do pensamento conectado à natureza “na terra-mãe concebida de vento, de fogo, de água e sal”. A harmonia entre ancestralidade e futuro aparece novamente em Parabolicamará, álbum de 1991 que já em seu título concatena as antenas parabólicas e os camarás da capoeira. Na canção-título e em outros momentos do álbum, o artista mostra o desejo de uma consciência de futuro que abrace a inovação sem deixar de lado a memória do que se passou e expandir o mundo conhecido através do conhecimento do passado e sua força.
Ainda nos anos 90, o artista mostra que o conhecimento do passado vai ao futuro com “Pela Internet”, uma homenagem a “Pelo Telefone” de Donga, o primeiro samba registrado no país e tocado em rádios pelo Rio de Janeiro que em 1917 já falava das maravilhas da vida através da tecnologia, e de encurtar distâncias pela telecomunicação. “Pela internet” retoma esse sentimento de maravilhamento com Gil se dando conta de ter o mundo a um clique de distância, através da internet. “Pela Internet” foi a primeira música transmitida via internet no Brasil assim como “Pelo Telefone”, que fizera história sendo transmitida pelo rádio 80 anos antes.
A música constrói uma ponte entre a ancestralidade do samba e a velocidade do que hoje chamamos de streaming com versos como “O chefe da polícia carioca avisa pelo celular que lá na Praça XI tem um videopôquer para se jogar!”, que é uma citação que contemporiza a música “Pelo Telefone” que ele revisita amorosamente: “O chefe da polícia pelo telefone/ Manda me avisar /Que na Carioca tem uma roleta / Para se jogar”. Já em 1996, o artista cria o futuro, através da transmissão ao vivo pela internet, que só hoje se tornou comum no nosso dia a dia.
No álbum Quanta onde “Pela Internet” apareceu pela primeira vez, Gil vai beber na fonte da física quântica para refletir sobre a humanidade, ciência e arte, com uma leitura poética sobre a criação, construindo pontes entre as reflexões da ciência e o que os povos antigos já filosofavam no candomblé e outras tradições ancestrais.
Ao longo de toda sua obra, o artista explorou uma visão de tecnologia e ciência que abraça o novo e o cósmico sem deixar de lado todo o conhecimento da ancestralidade, mostrando que o que os povos negros construíram no passado é peça essencial para qualquer futuro que venha a ser criado.
Recentemente Gilberto Gil esteve no acelerador de partículas ELENA na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) tocando “Quanta” ao violão e essa imagem que exibe a rusticidade acústica do violão existindo harmonicamente dentro de um grande feito da pesquisa científica pra mim simboliza fortemente o que é o afrofuturismo e responde a pergunta que deixei no primeiro bloco desse texto. Existe gente preta no futuro? Com toda certeza sim. Existem heróis pretos no futuro. Existe Gilberto Gil no futuro.
Considerações finais após o final
Enquanto escrevia esse texto lembrei que quando era criança ODIAVA “Pela Internet” porque caía todo ano nas provas de geografia do ensino fundamental, inclusive demorei a mergulhar na obra de Gilberto Gil depois de adolescente por causa do ranço infantil que eu tinha dessa música que hoje em dia gosto tanto.
Poderia continuar falando sobre a relação de Gilberto Gil com o futuro por linhas infindáveis mas decidi me concentrar em poucos momentos e canções pra efeitos de clareza e concisão do texto. Sei também que outros músicos importantíssimos da nossa cultura também tinham um contato muito próximo com as questões do afrofuturismo que apresentei aqui sendo um dos seus expoentes o fantástico Jorge Ben, sobre quem ainda quero escrever, principalmente sobre A Tábua de Esmeralda sob esse viés afrofuturista mas ainda quero pesquisar um bocado a mais antes de trabalhar esse texto pro Insanidade Artificial.
No processo de produção desse texto chegou na minha caixa de entrada uma edição da newsletter do
falando sobre o “Expresso 2222” que tá um barato de ler e tem uma receita de drink que quero muito experimentar.Fiz uma playlist no spotify com as músicas que comentei nessa edição e algumas outras do Gil e outros artistas dentro dessa temática e estética. Senta o dedo no play e vamos pro futuro, meus amigues.
Abraços e até uma próxima edição!
Poxa Diego, que texto bacana! Acho que mostra muito o tamanho e a versatilidade do Gil. Obrigado pela leitura e pela recomendação ❤️