Memórias de um vendedor de pipas | Insanidade Artificial #30
Pipa, papagaio, arraia, pepeta, cafifa...
Ai que delícia o verão… verão tropical, aquela época em que o calor está beirando o insuportável e as crianças estão de férias, costuma me lembrar dos verões que passei na minha cidade natal ajudando meu pai na loja de pipas dele. Durante esses anos, acumulei uma série de histórias e curiosidades que trago aqui em formato de listinha pra abrir a agenda de posts desse ano na newsletter.
Assim como qualquer produto, as pipas tem tendências de modelos e estampas que vão e voltam com o passar dos anos. O modelo que foi sucesso nas férias de julho pode ser um completo flop no verão.
Atender majoritariamente crianças pode ser muito divertido mas também pode ser irritante. Tem as crianças que visitam a loja todo dia comprar a mesma pipa e mesmo assim perguntam o preço de todos os produtos toda vez que aparecem.
Como vendedor de pipa, sempre te perguntam qual pipa é mais adequada pro vento que tá fazendo no dia. Mesmo trabalhando com isso por anos, nunca fui pipeiro ativo, então me baseio no modelo que mais saiu no dia pra indicar pra quem pergunta isso. Costumava dar certo.
A linha que se usa pra soltar pipa é a linha 10. A “unidade de medida” base pra indicar a quantidade de linha dos carretéis é o dezão(500 jardas~450m) e os submúltiplos dezinho(200jardas) e o tubinho (100jardas). Ex: esse tubo tem 5 dezão(no singular msm)
A armação(esqueleto) da pipa é feita tradicionalmente com varetas de bambu mas mais recentemente tem-se usado varetas de fibra de vidro com a vareta de bambu só no centro da pipa pra agilizar e baratear a produção.
Muitas crianças que compram não sabem contar ainda, então é muito comum elas jogarem todo o dinheiro que tem no balcão(geralmente um monte de moeda com catarro) e perguntarem que pipa dá pra levar com aquele valor ou então acharem que 1 moeda = 1 produto.
Como as pipas eram feitas em casa mesmo, tínhamos que afinar as varetas de bambu pra deixar eles mais maleáveis pra armação e existe um instrumento específico pra isso chamado “afinador”, que em casa era chamado de “peitinho” por motivos óbvios.
Sempre ficava feliz quando aparecia uma criança pequena com um avô completamente bêbado porque eles sempre levam tudo o que tem na loja pro moleque e ainda pagam pipa pras outras crianças que juntam em volta. Natal e ano novo é quando isso mais rola.
Quem gosta de pipa com estampa de desenho animado é adolescente e adulto. Criança menor geralmente gosta de pipa com cor lisa.
Nunca venda pipa fiado, além de não pagar, quem levou a pipa nunca mais aparece pra comprar de novo e ainda sai falando mal da pipa pela rua toda.
Assim como os modelos de pipa estão sempre se aprimorando e mudando, as rabiolas também e existe um material específico de rabiola pra cada tipo de pipa.
Pipas pequenas e leves geralmente levam rabiola de plástico. Pipas grandes decoradas e que levam cola nos recortes tem rabiola de papel fino. As pipas intermediárias tem rabiola de carbono ou de papel fino dependendo da proporção entre o topo e a base. É um balanço bem complexo na real.
Carbono é aquele papel preto de máquinas de xerox e, embora tenha as vantagens pra quem solta, é horrível pra quem faz pq embola muito fácil a linha por causa da gramatura baixa do papel. Também demora muito mais pra colocar na pipa do que uma rabiola padrão de plástico ou papel fino.
A maioria dos clientes é menino e tinha quem não gostava de ser atendido pela minha mãe ou minhas irmãs só porque são meninas e mandavam me chamar ou chamar meu pai pra vender pipa pra eles. Deixo a problematização aí pra vocês.
No começo a gente comprava todas as pipas prontas mas com o tempo meu pai aprendeu a fazer as pipas e montou uma linha de produção. Hoje ele até cria os próprios modelos que só ele vende e os moleques se amarram.
Criança nem sempre é inocente e muitas vezes eles vão tentar te passar a perna mesmo. Direto uma criança vai comprar uma pipa hoje e chegar com ela no dia seguinte toda arrebentada dizendo que acabou de comprar e ela rasgou sozinha no céu.
Toda geração de crianças tem um cliente que supera todos os outros em chatice e são sempre as mesmas manias: pedir fiado, pedir pra trocar tudo que compram, querer levar a loja toda sem ter dinheiro e esmurrar o portão. Parece que dão aula disso em algum lugar pra essas crianças.
Sempre tem uma criança que pergunta “moço quanto é a pipa de 1 real?”
As crianças que compram tiram as moedas dos lugares mais inusitados. É dinheiro na cueca, na orelha e até na boca. Criei o hábito de me banhar em álcool bem antes da pandemia por conta disso.
Vender pipa desde muito novo quer dizer que eu cresci junto com os clientes e antes de sair da Baixada cheguei a atender os filhos dos clientes que tinham a mesma idade que eu.
Uma vez chegou um grupo de 10 crianças ao mesmo tempo no portão, minha irmã arregalou o olho por causa do tanto de gente e eles perguntaram “tá com medo da gente, tia?”
Os adolescentes e crianças mais velhas usam a hierarquia pra mandar os menores comprarem pipa pra eles.
A gente tinha codinomes pra identificar todos os clientes.
Quando uma criança muito pequena vem com muito dinheiro querendo comprar tudo pode ter certeza que a mãe não deixou ele usar o dinheiro todo e vai vir reclamar logo logo que o menor pegou o troco do pão pra gastar em pipa.
Como a gente vendia pipa no quintal de casa, tinha que ficar de olho porque de vez em quando o cliente saía correndo freneticamente querendo entrar na casa e, quando você menos esperava, tinha um menor catarrento na cozinha de casa.
Pipa muito grande (com mais de 50cm de comprimento) sai muito pouco mas a gente sempre tinha na loja porque faz volume, deixa as crianças babando e enfeita a loja.
Toda temporada aparece uma menininha empoderada diferente que manja muito de pipa mas nunca aparece de novo na próxima temporada.
Hora do lanche da tarde é o horário de maior movimento porque as crianças aproveitam que estão indo levar o pão do lanche pra casa e passam na loja pra levar uma pipa.
Uma vez meu pai fez uma promoção em que a cada 10 reais, o cliente poderia estourar um balão pra ganhar um prêmio. Da primeira vez que eu atendi nessa promo, não tive tempo nem de dar o palito pro moleque estourar porque ele chegou já botando o dente no balão igual um bárbaro mordendo a bunda de um mamute.
Nos mais de 10 anos que passei na lojinha de pipas, já vi todos os tipos de crianças com os mais diferentes gostos, mas uma coisa que jamais vou entender é por que diabos eles preferem as pipas com os papéis mais feios que a gente tem. Já explico.
Durante um bom tempo o modelo de pipa mais vendido foi esse aí em cima dos Power Rangers. O papel é tão feio mas tão feio que meu pai se arrependeu profundamente de ter comprado depois que fez a primeira pipa com ele. Parece até aquelas imagens de “kill me please” que você via no 9gag.
Se a gente só vendesse pipas assim eu entenderia, já que não é todo mundo que sabe fazer uma boa estampa de pipa mas o fato é que na loja também tem pipas com o papel que está na foto de baixo, um verdadeiro trabalho artesanal feito com recortes de papel fino pelo meu pai.
A pergunta é: se pelo mesmo preço dá pra comprar uma pipa muito mais bonita, por que as crianças gostam daquele negócio mais feio que Cthulhu? Respondam nos comentários e soltem pipa sempre sem cerol.
ai diego, que texto maravilhoso hahaha
uma nostalgia tremenda de ir pra casa da vó nos finais de semana e ver pipa pra todo o lado.
infelizmente, sou parte da estatística de meninas que não empinavam pipa, mas sempre acompanhei maravilhada meu irmão fazendo.
e dei uma risada gostosa da pipa do power rangera hahahah mas é uma lindeza o trabalho do seu pai!
adorei mesmo o texto, obrigada por compartilhar ✨