Em "Flor de Lis" quem morreu foi Djavan | Insanidade Artificial #28
O que é verdadeiro quando falamos de música?
Você conhece a história de “Flor de Lis”? A canção de 1976, presente no primeiro álbum de Djavan conta a trágica história do cantor com sua então esposa Maria e a descoberta de uma gravidez. Uma menina cujo nome seria Margarida. Porém, durante o parto houveram complicações e Djavan teve que fazer uma difícil escolha, optando pela vida de sua esposa Maria ou de sua filha Margarida. Ele teria pedido ao médico que salvasse as duas, mas isso não foi possível e ambas acabaram falecendo. Djavan então cria essa música belíssima como uma forma de homenagem aos seus amores mortos de forma tão trágica.
É uma história de beleza trágica, tocante e… completamente falsa.
Essa interpretação ganhou popularidade na internet brasileira ali nos anos 2000 em correntes de e-mail e mensagens no Orkut e chegaram aos ouvidos do cantor alagoano que já foi a público inúmeras vezes desmentir a história como sendo falsa. O que deixa a pergunta: a inverdade dessa história torna essa interpretação errada?
Roland Barthes em seu texto “A Morte do Autor” vai dizer que “a escrita é a destruição de toda voz, de toda origem”. A intenção do autor está ali presente mas nem sempre ela vai ressoar da mesma forma como foi imaginada a partir do momento em que sai do domínio do autor e encontra a interlocução com o leitor. E no caso da música isso é ainda mais pungente por conta do aspecto música da coisa.
Voltemos ao exemplo de “Flor de Lis”, numa das entrevistas em que Djavan desmente a história sobre sua música, ele diz:
“Eu nunca tive por essa música uma impressão de tristeza, embora ela fale sobre um grande amor que não aconteceu. É uma música que conta uma história, de maneira leve, e a confusão é isso (com o refrão), mas ele não está se lamentando.”
Mas quando analisamos o instrumental do pré-refrão vemos uma progressão de acordes menores acidentados.
Am6 E foi assim que eu vi Fm6 C7M(9) E7(9+) Nosso amor na poeira, poeira Am7(9) E/G# Gm7 Morto na beleza fria de Maria
Este tipo de acorde é comumente associado a emoções tristes na nossa tradição musical, portanto, apesar da intenção do compositor de apenas relatar um amor que não foi pra frente sem a lamentação, o instrumental brinca com as nossas emoções ao nos dar uma sequência de acordes que remete à tristeza e ao choro.
Bruno Álvaro, historiador, cronista (e meu primo) contou em um de seus textos que transformou o clássico “The Musical Box” do Genesis, uma música sobre assassinato na sua canção de amor por causa do último verso onde se ouve “Why don't you touch me, touch me?” Constantemente, enquanto ouvintes de música somos levados a atribuir significados muito diversos daqueles que o autor propunha.
“Two Ghosts “do Harry Styles fala de um casal que se reencontra depois de muito tempo e percebem que, por causa das mudanças que a vida fez neles, não são exatamente as mesmas pessoas de quando estavam juntos. A letra e o arranjo meio country trazem uma melancolia sobre essa separação. O engraçado é que, pra mim, essa música ainda tem a ver com relacionamentos mas me toca de um jeito totalmente diferente. Principalmente no refrão que diz:
We’re not who we used to be
We’re not who we used to be
We’re just two ghosts standing in the place of you and me
Quando a ouço, penso nos amigos que já foram muito próximos mas, que hoje em dia, nem tenho mais contato. Eu mudei, eles mudaram, ainda temos as boas lembranças de quando andávamos juntos mas não somos mais as mesmas pessoas de antes, não faz mais sentido compartilharmos a vida da mesma forma. É triste não ter mais tanto em comum com quem já foi a parte feliz do seu dia mas é bom saber que sempre haverão as boas lembranças desse outro tempo e perceber o quanto algumas mudanças fizeram bem pra todo mundo.
Uma outra música que me toca de um jeito completamente diferente do pretendido pelo autor é “Love On Top” da Beyoncé, vocais, arranjos e clipes são totalmente pra cima o tempo todo com uma letra que fala do lado bom do amor e tudo o mais mas, só de ouvir o verso inicial, uma badzinha se apodera de mim. E é interessante ver como lugares e pessoas trazem uma nova carga, mudando a nossa percepção de uma música. Antes do meu período de intercâmbio, essa música era só mais uma da Beyoncé. Mas, depois de um Halloween onde cantei essa música com meus amigos numa festa e depois fomos pra casa chorar na cozinha abraçados juntos, ela ganhou outro significado. Virou a nossa música, o som que embalou nossa amizade durante todo o tempo em que estivemos juntos, a representação sonora de um momento único na minha vida. Ouvir “Love On Top” hoje em dia é uma roleta russa, nunca sei se vou sorrir muito lembrando de todas as vezes que cantamos essa música em viagens e outros momentos ou se vai me destruir em pedacinhos com a nostalgia de locais e pessoas que ainda são muito queridas mas que não estão nem estarão mais todos os dias comigo.
Djavan constantemente diz em entrevistas que suas composições não falam de si e é interessante ver como as interpretações erradas de sua música quase sempre tentam atribuir a ele a emoção de todos os seus eus-líricos e a teoria do liquidificador artístico da pianista e escritora Amanda Palmer exemplifica bem a dualidade entre vivência e arte. Em “A Arte de Pedir”, a musicista diz:
“A minha tendência é deixar que as coisas se misturem apenas de leve, isto é, costumo colocar o liquidificador na velocidade baixa. Numa escala de um a dez, ele fica no três. Se você olhar, ainda reconhece os ingredientes: no gaspacho artístico final, pode ter um dedo decepado e triturado, mas, se observar a tigela com atenção, ainda dá para vê-lo boiando ali.”
Pra mim, a beleza da arte e, principalmente da música é que quando ela sai da mão e da mente do autor pro mundo, pode ter a interpretação que o ouvinte quiser. Essa mudança de domínio pode ir em qualquer sentido, uma música sobre assassinato pode virar uma canção de amor, uma canção de amor pode virar um hino de amizade, uma música sobre separação pode ser sobre boas lembranças, uma canção sobre um amor fracassado pode virar uma tragédia ainda maior, o que escrevo sobre mim pode ser que um dia fale sobre você.