Alfinetes | Insanidade Artificial #49
O que nos machuca, reflexões sobre Tetris, o livro da Tara Westover e o álbum conceitual do The Lumineers
I.
Um dos objetos inusitados que levava pras minhas aulas como estudante de arquitetura era uma caixa de alfinetes, objeto muito útil pra prender pedaços de isopor em maquetes de estudo e usar como representação do caule de árvores em escalas muito pequenas. Como a caixa era feita de um papelão muito fininho, se desfez depois de uma chuva que peguei indo pra faculdade e passei um tempo andando com alfinetes espalhados pelos bolsos da minha mochila, um furo no dedo e um putaquepariu pra mim mesmo toda vez que tentava pegar alguma coisa lá dentro. Esse desleixo com um objeto pequeno do meu dia-a-dia, me fez pensar no tanto de coisa que deixamos que nos machuque pela inércia de arrumar um pouco as coisas.
Embora as empresas e livros de auto-ajuda tenham estragado a metáfora, é interessante (às vezes) pensar na vida como um jogo e, nesse caso específico, como o Tetris. Pequenas peças que aparecem pra te desafiar a encaixar e limpar linhas. Só que, como tudo na vida, dentro do Tetris, a procrastinação, a velocidade do jogo e a desatenção com algum detalhe importante te deixam em situações complicadas quase sempre porque você tem a certeza de que uma nova peça perfeita vai aparecer e vai resolver seus problemas, deixando pro seu eu-do-futuro-próximo a responsabilidade que você não quis assumir agora. Mas, se parasse e refletisse sobre suas ações só um pouquinho, o seu eu-do-futuro-próximo ficaria muito mais de boa resolvendo outros problemas e não os que sobraram do passado.
Essa falta de consideração com nós mesmos e com quem está do nosso lado é altamente destrutiva e não leva a lugar nenhum. Eu queria ter uma boa conclusão pra isso mas fiquei muitos meses andando com uma caixa de alfinetes que me machucava constantemente, logo acho que não sou a melhor pessoa pra dar um conselho sobre isso pra ninguém. O que eu sei é que cansei de me machucar e machucar quem tem acesso à minha mochila emocional, então tô tirando um tempo pra finalmente jogar os alfinetes todos fora. Acho que meu eu-do-futuro-próximo vai agradecer.
II.
A internet (e a capa brasileira do livro) me venderam “A Menina da Montanha“ como uma história de superação de uma menina que mesmo nunca tendo pisado em uma sala de aula durante a maior parte da vida chegou ao doutorado em Cambridge e, bem, tem isso também mas esse nem de longe é o aspecto mais relevante desse livro.
“A Menina da Montanha” fala sobre como a relação com a família forma a sua visão sobre si mesma e o mundo e como nem sempre isso é algo positivo; fala sobre como a religião ao mesmo tempo que dá um propósito de vida e agrega também pode formar comunidades inquisitórias e com tendências a acreditar em teorias da conspiração; fala sobre como a forma como construímos nossa memória individual está muito atrelada à memória dos outros sobre nós; fala sobre relações de poder entre gêneros; e fala também sobre o poder libertador da educação. Tudo isso com uma escrita que ao mesmo tempo que faz com que você não queira largar o livro, também é muito dolorosa e desconfortável.
III.
III é um álbum conceitual da banda americana The Lumineers que explora como o alcoolismo e o vício em drogas impactou três gerações da ficcional família Sparks e toma como inspiração a experiência do baterista Jeremiah Fraites que perdeu o irmão, amigo de infância do vocalista Wesley Schultz, para o alcoolismo. O álbum se divide em três atos, cada um focado em um membro da família Sparks, e foi concebido junto a um filme que ajuda a contar a história, mas as músicas são igualmente impactantes mesmo sem o auxílio do recurso visual.
“Gloria” é o ponto de partida para a história e é apresentada no capítulo I. A linha de piano similar a uma caixa de música na abertura “Donna” ajuda a passar o tom de recordação que a faixa pede, apresentando a mãe de Gloria Sparks e a falta de amor que a levou a abandonar a casa para uma vida na cidade. “Life In The City” conta a dificuldade de viver sozinha na cidade e o instrumental que oscila entre algo mais animado nos versos e mais introspectivo no refrão ajuda a passar a flutuação de sentimentos entre a liberdade e a saudade de casa e entre o barato do álcool e a ressaca que vem depois. O primeiro ato fecha com “Gloria” onde a matriarca é confrontada pelos seus filhos sobre seu vício e como isso os afetou. O contraste entre uma construção musical que lembra bastante o folk alegre dos primeiros trabalhos do Lumineers com a letra pesada passa bem a total alienação de Gloria que, completamente alcoolizada e perdida, não presta atenção ao conteúdo do que lhe é dito pela sua família.
O segundo ato traz o neto de Gloria, Junior Sparks, para a cena e abre com “It Wasn’t Easy To Be Happy For You”, uma música sobre a primeira vez que um adolescente tem seu coração partido e é o único momento em que o conceito do álbum falha em função de uma música legal. É uma ótima música, muito amigável pra tocar em rádios e playlists mas não se conecta bem com o que vem antes ou depois tematicamente. Mais adiante no arco de Junior, vemos como ver a vó perdida em seu vício o afeta profundamente em “Leader Of The Landslide” que narra como ele enxerga Gloria como a causa da dificuldade de relacionamento que ele tem com as pessoas à sua volta e seu pai, Jimmy Sparks, que será apresentado no último arco. A música é construída de tal forma que as partes mais pra cima com a bateria e o violão soam como um pedido de ajuda do rapaz, como se ele estivesse reunindo as últimas forças para expressar sua raiva e a performance vocal de Schultz passa esse desespero perfeitamente. O arco fecha com “Left For The Denver” uma música voz e violão com acordes menores e uma batida descendente que dá o tom trágico de ser abandonado pela mãe que não aguenta conviver com os conflitos dos Sparks nesse ponto da história
Jimmy Sparks é o foco do capítulo III e conhecemos sua história logo depois de ser deixado pela esposa em “My Cell” que narra os conflitos de amar uma pessoa mas ser tão quebrado a ponto de não deixar que ela se aproxime. As linhas de piano e violão que se combinam com a voz expansiva e melancólica de Schultz trazem instrumentalmente esses sentimentos conflitantes de querer um lar de amor mas acabar condenado a se sentir internamente em uma cela consigo mesmo. “Jimmy Sparks” prepara o ouvinte para o final de uma forma épica com uma vibe de trilha sonora de faroeste que vai ficando cada vez mais tensa conforme vemos a vida de Jimmy indo mais e mais para o fundo do poço com seus problemas e vícios em drogas até o ponto de ser abandonado por seu filho Junior e ficar totalmente sem esperança. O arco e o álbum fecha com “Salt And The Sea” que narra como algumas coisas não tem solução e algumas pessoas não tem salvação. O tom soturno do instrumental combinado a uma certa calma na performance vocal passa a ideia de que todos os membros da família Sparks aceitaram conviver com a destruição e a escuridão que existe dentro deles, uma aceitação do inevitável para que possam continuar a viver.
Com III o grupo leva a característica narrativa de suas músicas a um nível mais sombrio e pessoal, explorando e amarrando os diferentes sentimentos que uma história pesada como essa envolve. É o álbum mais ambicioso e obscuro do grupo e vale a pena ser ouvido do início até o fim com bastante atenção aos detalhes que ajudam a contar essa história.
Linhas paralelas
Textos e links que cruzaram meu caminho no infinito da rede.
The Lumineers - III
HYPERBRAZILIS - GG/ACC, PABLO MARÇAL E TEOLOGIA DE DONO DE FAZENDA
Abraços e até depois!
diego b
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