Estar vivo é esquisito. Estar vivo e completando 30 anos é muito esquisito. Veja bem, o fato de completar 30 anos per se não é nada esquisito, afinal estamos em 2024, tomei todas as vacinas e não estamos na Idade Média com alguma peste espalhada pela falta de higiene e saneamento básico que reduz a expectativa de vida e faz 30 anos parecer uma longa e bem vivida vida. Você já pensou que o mago Merlin, provavelmente só era considerado sábio e velho porque passou um pouco dos 30 anos em razão de ter algum conhecimento no uso de ervas medicinais e morar numa cabana no meio do mato e não enfiado numa cidade que mal tinha ventilação direito e cheia de europeus que cagavam em balde e não tomavam banho nunca? Enfim, estou tergiversando.
É difícil explicar pra quem não tá dentro da minha cabeça que eu jamais pensei que viveria esse “tanto”. Não tenho nenhuma doença terminal pique “A Culpa é das Estrelas” nem nada parecido mas sempre achei que eu ia de base bem bem antes disso. E acho que isso deve ser em boa parte porque eu achava que não deveria estar aqui, saca? Trinta anos atrás na menor cidade da Baixada Fluminense uma camisinha estourou e nove meses depois apareceu um neguinho cabeçudo de cabelo enrolado, nada além disso, um acidente de percurso. E nada errado com isso, muita gente nasce assim e vive suas vidas na maior plenitude só que por algum motivo que a terapia ainda não me revelou eu cresci com uma constante e incapacitante sensação de:
E com essa sensação inexplicável e inseparável de inadequação desde muito muito novo somado a toneladas de culpa cristã mas isso é assunto pra outro texto vinha uma tristeza e uma angústia que me acompanharam e acompanham há muito tempo e, por falta de repertório psicológico e talvez por achar que o fogo de deus me fulminaria por ter tais pensamentos pecaminosos achei que eu não duraria muito tempo nessa terra e, de algum jeito torto, depois que secularizei minha visão de mundo continuei achando isso.
Não me pergunte como mas o prazo foi constantemente esticando; quando era criança achava que iria morrer antes dos 14, os 14 chegaram e eu não morri. Quer dizer, mais ou menos. Com essa idade morreu a parte de mim que acreditava em um deus e comecei a questionar internamente, timidamente, o que a religião me ensinava, não morreu totalmente minha fé ali, foi aquela coisa moribunda, zumbizística com muitas tentativas de ser revivida por anos até ser soterrada. Depois dos 14 fiquei “ué, não acabou? o que eu faço” O prazo foi esticado por mais uns anos até eu acabar a escola. A escola acabou e eu não morri. Fui assim, indo, achando que ia embora mas sempre ficando mas essa data de agora, os 30 pareciam que nunca seriam alcançados, até tentei abreviar antes pra confirmar minha profecia autorrealizada mas, em mais um acidente de percurso, deu errado e continuei o percurso.
E fiz um tanto de coisa legal no meio disso, sabe? O mais louco é que, mesmo com essa certeza inabalável de que eu não duraria muito, fui fazendo coisas porque, bicho, eu sabia que eu não ia durar muito e eu queria muito entender o mundo que me cerca, logo eu precisava achar um jeito, uma maneira de registrar o que eu entendo, o que eu conheço e o que eu não entendo e o que eu não conheço nesse mundo e a maneira que encontrei de fazer isso foi com o desenho, a imagem e a escrita eventualmente. Morando na menor cidade da Baixada Fluminense, uma das regiões mais pobres do Rio de Janeiro, com uma família sem muitos recursos mas que me incentivava no estudo e na arte de alguma forma, encontrei na imaginação, através da escrita mas principalmente do desenho, uma maneira de seguir em frente, de fugir da dificuldade material criando meus mundos no papel, inventando o que não existe com linhas para não encarar a dor do que existe.
Nem todo mundo entendia, nem eu às vezes entendia, mas desenhar e ler e escrever com o que eu tinha à mão foi o que me alimentou quando às vezes faltava o pão. Não era mesmo pra eu ter durado tanto quando olho pra trás. Como que um garoto preto, sensível desse jeito, crescendo num lugar pobre esquecido por deus ia ter alguma chance de alguma coisa? Era pra eu ter sido engolido. Não fui. Eu tinha fome, não só de comida. Era de algo que não sei o que é. Na igreja dizia-se que o vazio do peito é a fome que sentimos do espírito de deus e talvez fosse mesmo e fui atrás de preencher o espírito ao ler a bíblia mas não apenas, lia o que aparecia na minha frente, folhetos que se entregam na rua, placas, os livros que meu tio pegava no lixo e levava pra sua biblioteca que eu devorava, as partituras de Bach e Tchaikovsky na aula de piano, as equações da álgebra e os teoremas da geometria…
Numa aula de geometria no ensino médio, minha professora revelou que era arquiteta de formação e que o seu entendimento da geometria vinha em grande parte da arquitetura. Arquitetura? Que diabo é isso? Já tinha ouvido falar mas não sabia o que era direito, conversei com ela e com os colegas de turma e acabei caindo na escola técnica, onde o que eu mais gostava eram as aulas de projeto, chegou o vestibular e não deu outra: arquitetura foi a escolha certeira. E, pela primeira vez não me senti tão deslocado e achei algo que eu persegui com unhas e dentes. Eu não tinha referência de ter pisado em grandes projetos icônicos da arquitetura mundial então passava horas e mais horas na biblioteca da faculdade estudando tudo que pudesse e entendendo tudo o que podia sobre esses prédios.
Numa dessas incursões na biblioteca encontrei uma instalação artística chamada Cloud Gate, de Anish Kapoor (sim, é o cara do Vantablack) e pensei que seria muito massa visitar essa instalação um dia porém sabia que não seria possível, afinal eu trabalhava em estágios que pagavam bem mal pra ajudar a me manter na graduação e quantos neguinhos de Mesquita você já viu pisando em Chicago, afinal de contas? De algum jeito, leia-se muito muito trampo, notas boas e um programa governamental consegui visitar o Cloud Gate e morar nos Estados Unidos por um ano e conheci assuntos e tecnologias que movem minha pesquisa pessoal e meu trabalho desde então.
Depois de retornar e me formar, trabalhei mais um tanto, estudei mais um bom tanto e trabalhei mais ainda e percebi que, quando eu trabalhava, a sensação de que eu não devia estar aqui, de que eu não devia estar vivo, sumia um pouco, só um pouquinho mas sumia e aí passei a trabalhar mais, cada vez mais e fui ficando bom em disfarçar que não estava fugindo de nada com trabalho quando na real eu só queria a chance de dizer que tinha uma razão pra estar vivo, que eu tinha alguma importância, que se eu trabalhasse duro o bastante talvez, só talvez eu merecesse estar vivo, afinal eu faço bem isso né? Deve ser pra isso que eu tô vivo, trabalhar até sumir qualquer traço de personalidade, de individualidade e de angústia pra que alguém que não eu ganhe muito dinheiro com isso e eu seja feliz fingindo que não existo para além disso. Só que anos disso cobram sua conta, chega uma hora que fica insustentável e demorei muito tempo pra perceber isso e, na real, nem percebi isso sozinho.
Em alguma sexta-feira fria de inverno, encontrei uma pessoa, saímos, rimos e saímos e rimos mais e conversamos mais e não mais que de repente, estávamos nos vendo todo dia e morando juntos e criando gatos e, observando os gatos e conversando todo dia com essa pessoa vi que talvez dava pra ter outras razões pra estar vivo, que talvez não precisasse ocupar todo e qualquer espaço mental com trabalho e que talvez eu merecesse estar vivo, não pelo que fiz ou conquistei para mim ou para alguém mas sim porque eu sou eu, apenas eu, assim, sensível desse jeito, com esses interesses que nem sempre conversam entre si, com essa fala e pensamentos ocasionalmente acelerados pra além da compreensão de quem não convive comigo, com essa cor de pele, esses graus de astigmatismo, essa leve perda auditiva em um dos ouvidos e esse estilo de escrita que reflete o que vivi e li e pesquisei e joguei e desenhei nesses últimos 30 anos.
Chego hoje, exatamente hoje, 17 de julho de 2024, aos meus 30 anos, fazendo o que gosto de fazer, lendo sobre o que gosto de ler, ouvindo o que gosto de ouvir e seguindo na minha busca pessoal por entender o mundo que me cerca através da arte, independentemente do formato que essa arte assuma. E, pela primeira vez nesses 30 anos, estou em paz com a ideia de uma vida para mim, sendo gentil com quem passar pelo meu caminho mas, principalmente, sendo gentil com quem sempre esteve e estará comigo até meu último suspiro: eu mesmo.
Feliz aniversário, Diego.
Diego, seu texto me emocionou demais.
Obrigada, identifiquei-me em cada palavra. Fiquei pensando: o que faz de “nós” pessoas que nascemos em situações precárias nos aproximarmos de arte e beleza ?
Está em nosso DNa ? Quando foi o estalo ? Por mim, acredito que nasci com olhar diferente e que ter nascido assim, tão sensível, de alguma forma a natureza me cobra.
A falta de conexão com este mundo e a busca por uma razão para existir nos acompanha por termos nascido assim ?
Em minha pele tatuei uma frase para lembrar de que a morte está na esquina e não a rejeito, pelo contrário, ela quem me faz continuar buscando motivos para viver.